terça-feira, 5 de julho de 2011

Viver no Rio



O prédio. Uma onda quase um S na encosta de um pedregulho no alto do bairro de São Cristovão, nas costas dos morros do Tuiutí e da Mangueira. Nesses 25 dias que ali fiquei convívio-confidentes com Regina, Mariana,Sabrina, Cláudio,Renatão, Maria, Né, Bel e outro(a)s tant(a)os. Percebia as crianças presentes em todas as partes e horários, queridas e amadas, mas que seriam perfeitamente dispensáveis ;Para os adultos aproveitarem melhor a roda de papo tomando cerveja, o fazer  do cabelo e da unha ,ou simplesmente liberdade para hora em que eles falam e riem-se de todos os outros conhecidos vizinhos, vivos ou mortos, próximos ou distantes.
 As crianças são cuidadas por quem esta mais perto e aí morre o perigo. O corredor é o espaço do convívio mais estreito, as portas estando abertas é sinal de que o morador esta disposto a bater papo, sempre há uma ou outra porta aberta e alguém sentado do lado de fora. Avôs aposentados ou algo parecido, arrimos de família. O calor libidiniza os assuntos o sacolé custa de 20 a 50 centavos e está sempre a refrescar quem o chupa, isso faz do corredor um ventilado ponto  onde tudo se conversa. E que vocação ao bate papo que tem o carioca, eles falam muito, o tempo todo, sobre tudo as vezes não conseguia entender o que estava sendo dito , e tenho a impressão que nem mesmo eles o sabiam ,mais mantinham essa prosa louca e minimal, mais por necessidade de um bem estar dentro de seus antigos hábitos do que algum questionamento ou construção de razão transgressora.

O mais enriquecedor desta brincadeira foi sentir-se acuado por um sotaque diferente hegemonicamente absoluto, donde muitas vezes (eu que muito falo) me via obrigado a exercer a audição me calando por sequências inteiras de momentos. E para minha grata surpresa em outras situações ser acolhido e requisitado ( Em muitos momentos as pessoas achavam que me conheciam ou diziam ter a impressão que já haviam convivido comigo há muito tempo).

Volto assim com uma certeza, se Euclides da Cunha disse: O sertanejo é um forte. Amplio essa força e esse sertão a outras paisagens do nosso Brasilzão.

Difícil é a vida no Rio, pouca grana, aluguel caro, serviços fundamentais que se fecham cedo, medo de bala perdida, no morro a população desproporcionalmente “preta” ; mas o sorrizão ali presente, a disposição ao bate papo, o suingue dos quadris que rebolam até mesmo quando se sobe o morro carregando peso, a alegre malemolência de cachorros que levam a carroçinha divina aos céus após terem capturado o cão para no paraíso virar sabão, que se encontrava escondido num baile funk proibidão.



Sobre o morro Santa Marta



Oitocentos e cinquenta degraus na direção do suvaco esquerdo do Cristo. Adorei aquele elevador, quando você chega lá no alto na sua ultima parada, a brisa é mais revigoradora do que a visão, do Cristo, da lagoa ou da Baía, na parte mais alta do morro a antiga escola que hoje é a base da polícia pacificadora , alibans com uma puta vontade de serem “Americanos”. O visual do alto é enlouquecedor, o Cristo, a mata, os bairros nobres no pé do morro, as águas, o muro e a favela.

A favela vista do alta e de dentro, leva-nos a pensar: Quem esse cristo protege ou favorece? Embora haja algumas casas feitas pelo PAC, outra feita pelo Luciano HulK, passarelas e postos de coleta seletiva de lixo, o colorido acinzentado da pobreza ainda é muito forte. Não se vê armas (só com os policiais) e nem uso/tráfico aberto de drogas, e isso me parece algo bom. Mas ainda vemos barracos sem janela, uma água suspeita que escorre da parte mais alta, muito lixo, pessoas fazendo nada e muitas crianças.

Por todos os lados crianças regidas pela sinfonia do ócio e do mínimo cuidado, que nos revelam que mesmo estando matriculadas não conseguem ler e escrever. Crianças que são cuidado de todos, de quem estiver mais perto, sorridentes , lépidas,falantes e serelepes; mas também com a pele manchada.

A primeira vez que subimos no Santa Marta ou Dona Marta? Até agora não entendi. As crianças e o seu Armando (couro seco) pinguço oficial do morro nos receberam , fomos até a quadra, até os barracos mais insólitos no alto do morro acompanhamos o traçado do muro por alguns metros, com  seu Armando que o tempo todo lembrava-nos do perigo das cobras ( que segundo ele e outros moradores do morro enfestaram o lugar depois das obras).

O desenho do buraco no muro, a poética irtervenção das pipas a luta de capoeira dos meninos de afrofuturismo. Todos esses momentos foram uma maneira sutil de especular e fazer parte daquele lugar por alguns instantes, porém o que mais me entorpeceu ali, foram os olhos, sempre  foram algo que me perseguem e eu reciprocamente eles desde minha mais tenra fase. Os olhos daquelas crianças dizem o inevitável que mem elas mesmas sabem mas imaginam. Que só será redimido se alguma perspectiva for ali nelas introduzida. Os olhos do Armando couro seco, seguidos de uma voz ébrio-psicótica a dizer que todo negro de São Paulo é seu primo e filho do Pelé, sendo assim rico. Seguido de um ímpeto sacro-profano (na segunda vez que nos vimos)gritando que São Pedro é F.d.P. por inundar São Paulo e deixar o Rio Tão quente e seco por tantos dias, senti nele ali naquele momento a força trágica que não há mais no teatro atual.

Mas foi na procissão para o padroeira da cidade São Sebastião que tive os momentos mais emocionantes da minha incursão no Dona Marta, um reizado que desce o morro todo ano, que maquele momento desceria sem o palhaço, pois o mestre havia morrido algumas semanas antes. Uma comoção de luto, as pessoas cantavam, andavam e choravam com S. Sebastião a’ frente atravessando até os fundos de um ensaio de escola de samba sem que uma coisa atrapalhasse a outra, esse santo bonito, martirizado com ar de lascívia e desejo homoafetuoso, que é posição sexual, padroeiro de causas e amores escusos, canibalizado por Mishima no Japão quase feudal da segunda guerra mundial. Saravá Rio, Saravá São Sebastião e que os muros não sejam capazes de apartar possibilidades de encontros, trocas e amores, para que a sociedade brasileira se transforme e avance.
 


Pedro Guimarães
Residência( experiência imersiva) no pedregulho(minhocão do São Cristovão) Rio de Janeiro